Há 137 anos, num domingo, a Lei Áurea era assinada. Mas qual liberdade raiou?
Há 137 anos, a madrugada de domingo e a euforia de ver raiar de um novo dia e o ecoar dos sinos de liberdade trouxe para uns um alívio estratégico para outros qual caminho seguir, A Princesa Isabel, com a pena em punho, rubricou a Lei Áurea. Libertou, dizia-se, os últimos grilhões da escravidão. Mas quem, de fato, foi libertado naquele instante? Para os senhores de engenho, paradoxalmente, o dia se revestiu de uma apoteose silenciosa, um triunfo disfarçado sob o manto da abolição.
Lei Áurea: O domingo que libertou o dono
Naquele domingo de maio, quando os sinos das igrejas soaram mais alto que o costume, o país acordou entre lágrimas e aplausos. A Princesa Isabel, com a pena em punho, rubricou a Lei Áurea. Libertou, dizia-se, os últimos grilhões da escravidão. Mas quem, de fato, foi libertado naquele instante? Na penumbra da história, nem todos celebraram com os olhos voltados ao céu. Alguns, de pé no solo fértil das fazendas, sentiram-se libertos de outra forma: livres da obrigação de sustentar, vestir, curar e conter os corpos que até então chamavam de seus.
Quando a pena não parecia ser dobrada
Durante séculos, senhores de engenho sustentaram o sistema sobre costas marcadas e mãos calejadas. Tinham, paradoxalmente, deveres com aqueles que escravizavam: cuidar do mínimo — da senzala, do prato escasso, da ferida aberta. No 13 de maio, esses encargos evaporaram com uma assinatura. A pena aérea transformou-se na pena da lei que libertou quase 700 mil indivíduos e, ao mesmo tempo, decretou a pena da ausência de direitos e de direção. A liberdade dos escravizados não significou dever para o Estado, tampouco reparo para os ex-cativos. Mas, para os senhores, representou a quebra de um contrato oneroso. A abolição, travestida de justiça, foi também um alívio contábil.
Pena sem dó: Onde os donos continuaram donos
Não houve redistribuição de terras. Nem de poder. A elite rural, treinada na arte do silêncio e da permanência, seguiu no comando. O palco mudou o pano de fundo, mas os protagonistas mantiveram seus lugares. Os libertos, por sua vez, foram lançados ao improviso — sem cenário, sem script, sem ensaio. Entraram em cena sem falas, apenas com o peso da liberdade sobre os ombros e o vazio da promessa nos bolsos.
Não houve políticas públicas. Nenhum plano de acolhimento, redistribuição ou reinserção. Nem educação. Nem saúde. Nem terra. A lei veio sem corpo, sem braços, sem mãos estendidas. Uma liberdade lançada do alto, sem redes. Muitos caíram. Outros se agarraram onde podiam. A maioria caminhou para os morros, para as beiradas das cidades, para as margens plácidas da história — onde o país finge que nada vê.
Domingo: O dia escolhido a dedo
Domingo. Dia do Senhor. Dia de fé, de pausa, da promessa da ressurreição.
Não foi ao acaso que a abolição aconteceu nesse dia. Carregava o peso simbólico da redenção. Um novo começo. Os sinos das igrejas badalaram, celebrando o fim de uma era sombria. Contudo, a festa da liberdade pareceu ter convidados exclusivos. Esse recomeço teve entradas limitadas.
A liturgia do poder não distribuiu convites àqueles que viviam à margem dos salões. Houve festa. Mas não para todos.
Liberdade que volta pelo mesmo caminho
A liberdade, para muitos, se revelou uma estrada circular. Sem abrigo, sem terra, sem salário, voltaram — os mesmos que haviam saído com a lei na mão — às fazendas que antes habitavam como cativos. Agora livres, mas sem escolha. Trabalharam sob contrato, mas sem direitos. A mesma casa grande. A mesma terra. Só mudaram as palavras.
O carnaval do dia seguinte
Na euforia dos discursos da Corte, o país parecia em júbilo. Mas, nas varandas das fazendas, em silêncio, a elite rural sorria discretamente. Estava, enfim, desobrigada. Já não precisava justificar as senzalas. Nem pagar pelo abandono. Celebraram a abolição esperando o dia seguinte — não pelo novo, mas pela permanência do antigo. Era o carnaval da desresponsabilização. Uma festa de máscaras, onde os libertos dançavam sem entender a letra e sem jamais escolher a música.
Ainda não raiou a liberdade para Todos
Mais de um século depois, a liberdade plena ainda não raiou para todos. O abismo social escavado pela escravidão segue fundo. As favelas, as filas de emprego, os corredores das universidades — todos ainda contam essa história, só que em silêncio. A luta por igualdade continua, não como continuação da abolição, mas como reparo por uma promessa quebrada.
História continua a ser escrita: A liberdade foi um começo, não um fim
A Lei Áurea encerrou o cativeiro, mas não rompeu as correntes invisíveis. A abolição foi uma porta aberta — sem ponte, sem chão, sem destino certo.
Os senhores de engenho celebraram sem música. Os libertos caminharam sem mapa. E o Brasil, até hoje, ainda aprende a contar essa história em voz alta — com mais verdade e menos véu.
Fonte: Própria / Editor: Eraldo Costa / Imagem: Banco de Imagens